Individualismo x Coletivismo | Legados do Coronavírus

Rodrigo Palhano
12 min readApr 28, 2020

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Você acredita que o homem seja naturalmente mais propenso ao individualismo ou ao coletivismo? Prestando atenção às suas atitudes no dia-a-dia, você se considera uma pessoa mais egoísta ou altruísta? São perguntas que nem sempre a gente se faz, mas pense um pouquinho sobre elas antes de continuar a ler este artigo.

A virtude do egoísmo.

Olhando para a literatura, encontramos autores que defendem as duas coisas, tanto a de que nós temos a propensão natural ao individualismo, como a de que somos animais sociais e que, portanto, naturalmente coletivistas. Ayn Rand, mãe do objetivismo, dizia que o egoísmo na verdade é uma virtude, e que um homem só poderia ser verdadeiramente feliz, e uma sociedade próspera, se tal homem agisse primordialmente segundo seus próprios interesses, em detrimento dos demais. Ela tinha uma visão bastante particular do o que é altruísmo, entendendo-o como o ato de agir em função dos outros a ponto de negar a seus próprios interesses, e comparava essa negação ao próprio suicídio.

Ayn Rand — Mãe do Objetivismo

Mas será que a gente nasce assim mesmo? Indo na mesma direção de Rand, Freud dizia que “a criança é totalmente egoísta, sente intensamente suas necessidades e aspira, sem qualquer consideração pelos outros, à sua satisfação, sobretudo diante de seus rivais, as outras crianças”. Ou seja, segundo Freud, nascemos já egoistas, já Rand vai além, acredita que nós não só nascemos egoístas como devemos ser egoístas para que tenhamos sucesso enquanto indivíduos e nações.

Ayn Rand influenciou profundamente a sociedade americana, uma das mais individualistas do mundo, sendo leitura obrigatória nas escolas até os dias de hoje.

O outro lado da moeda.

Quanto ao argumento de que nascemos egoístas, a opinião diverge, especialmente entre pesquisadores mais contemporâneos, onde encontramos evidências empíricas que mostram justamente o contrário do que afirmou Freud. Nessa pesquisa do psicólogo Michael Tomasello, ele demonstra que empatia, altruísmo e senso de colaboração são encontrados nas crianças desde muito cedo, e que esse comportamento não ensinado é muito próprio da espécie humana, não aparecendo em macacos, por exemplo.

Experimento sobre altruísmo com crianças

Outro psicólogo que falou a respeito do assunto foi Jordan Peterson. Ele alega que não é razoável nos nortearmos em termos de auto-interesse, simplesmente porque não estamos sozinhos no mundo, e porque tudo que fazemos afeta as outras pessoas e, por consequência, nos afeta também. Pensamento muito semelhante a lei do karma budista. Ele destaca ainda o fator tempo e o imediatismo, pois estes favorecem comportamentos individualistas, uma vez que trazem satisfação no curto prazo mas podem ser catastróficos no longo-prazo. Lembrei do aquecimento global. Ele exemplifica com o consumo de cocaína: “Se pensarmos somente no curtíssimo prazo, pode ser bastante prazeroso, mas no longo prazo trás problemas tanto para você quanto para as pessoas ao seu redor e à própria sociedade como um todo”. Ou seja, não é um comportamento sustentável.

Sociedades individualistas x coletivistas

Mas e quando trazemos isso para nossa sociedade, o que produz uma população mais feliz? Uma sociedade em que o auto-interesse levado ao extremo acaba por transbordar em resultados que beneficiam o coletivo? Ou uma sociedade em que o coletivismo como ponto de partida endereça melhor estas questões, dando melhores resultados no curto e no longo prazo?

O psicólogo estudioso do assunto, Geert Hofstede — falecido no último fevereiro/20-, elaborou uma ampla pesquisa analisando aspectos culturais comparativamente entre países. Para fazer tais comparações ele criou alguns índices, dentre eles o de individualismo (IDV). Este índice busca dizer o quanto uma sociedade é mais ou menos individualista quando comparada a outra. Ele esclarece que os termos: individualismo e coletivismo não são nada antigos, e que só se popularizaram a partir do século XIX, quando foram associados a vertentes políticas e que, apesar disso, sua pesquisa não tem como alvo a política, mas os vários impactos dessas mentalidades sobre as nações. Neste caminho, Hofstede descobriu várias coisas interessantes sobre sociedades coletivistas e individualista. Vejamos um breve resumo de seus achados:

  • Sociedades Individualistas são caracterizadas por laços fracos entre indivíduos, que se preocupam em termos de “Eu”, consigo mesmos primeiramente e com seus familiares diretos: mãe, pai e filhos. Classificam as pessoas universalmente como indivíduos, devido exclusivamente a suas particularidades. Nessas sociedades a competição se dá entre indivíduos.
  • Sociedades coletivistas são caracterizadas pela mentalidade do “nós”,por laços fortes entre indivíduos, primeiramente a família, agregados e a vila ou tribo a que pertencem. Classificam as pessoas de forma excludente, separando entre as que estão dentro e as que estão fora do grupo. Nessas sociedades a competição se dá entre tribos.
A seis dimensões culturais de Hofstede. Em destaque o IDV (Individualismo)

Outro fato bastante curioso apontado por Hofstede é a diferença da comunicação. Em sociedades coletivistas a comunicação se dá de forma altamente contextual e curta, já nas individualistas mais explicita e extensa. Isso se dá porque em sociedades coletivistas as pessoas tê um maior convívio, se comunicam mais rotineiramente, isso faz com que muito do contexto das conversas esteja subentendido e óbvio a ponto de não precisar ser dito.

Tweeto, logo existo.

A linguagem mais contexual é muito parecida com o que vemos no Twitter hoje em dia, comunicação curta, altamente baseada em contexto.

Já os individualistas, por não terem tanta interação, precisam sempre detalhar o contexto para poderem se comunicar de forma efetiva. Como é o caso de livros e jornais impressos.

Uma das conclusões que sua pesquisa aponta, é a de que, pelo menos no século passado, as nações mais individualistas, como a americana e as europeias, tem tido melhores resultados em indicadores financeiros do que as coletivistas, como as Latinas, Africanas e Asiáticas.

A tribo dos Uros no Peru.

Com a pequena Brigite, da tribo dos Uros.

Recentemente tive uma experiência interessante visitando a tribo dos Uros, no lago Titicaca, no Peru. Essa tribo vive há séculos em ilhas flutuantes, feitas de Totora — uma planta fartamente disponível no Titicaca. Conversando com uns dos nativos sobre seu modo de viver, eles me disseram que eles se sustentam de duas coisas: a pesca, com cada vez menos peixes disponíveis do lago devido a pesca industrial, e do turismo, turistas, como no meu caso, pagam um `ingresso` para poder visitar as inacreditáveis ilhas flutuantes e às vezes compram algum artesanato, eu comprei. Perguntei se a escassez do pescado não lhe preocupava, ele me disse que não vê as ilhas durando mais muito tempo por conta disso, entre outros motivos, mas que o fato deles trabalharem uns pelos outros ainda lhes permitia certo conforto. Ele me contou que quando eles saem para pescar não é sempre que todos conseguem peixe, e que quando eles voltam pra ilha os pescadores que conseguiram melhores resultados dividem a pesca com os que não conseguiram nada, eles não se preocupam em acumular o excedente, está na natureza deles esse senso do coletivo.

Barco com nativos da tribo dos Uros no lago Titicaca

Mas eu te pergunto, e se na primeira vez que o nativo tivesse saído para pescar e não conseguisse nada, na volta um colega de aldeia seu, com um monte de peixes na canoa, lhe negasse seu excedente, que tipo de comportamento você acha que ele teria se na sua próxima pescaria ele voltasse com 20 peixes?

Outro fator a ser considerado

Marshall McLuhan — Filosofo da Comunicação

Um autor que teve uma visão um pouco diferente sobre o assunto foi Marshall McLuhan. Estudioso do efeito das mídias sobre a sociedade, ele acreditava que determinados tipos de mídia, como o alfabeto e o livro, por exemplo, podem te tornar mais propensos ao individualismo, e outras mídias, como o radio e a TV, podem te tornar mais coletivista. O curioso é que esse efeito se dá independentemente do conteúdo que você está consumindo, a mídia faz isso por si só, falei mais sobre esse assunto aqui nesse artigo. Ou seja, podemos nos tornar coletivista ou individualistas independente da nossa própria vontade. Embora McLuhan — morto em 1980 — não tenha visto a internet, certamente a classificaria como uma mídia coletivizante, pelos efeitos que ela tem sobre nós.

Entendendo o efeito da mídia sobre a sociedade.

Quando consumimos conteúdo pela internet estamos constantemente interagindo uns com os outros, seja nas caixas de comentários, nos posts em redes sociais, ou mesmo nas curtidas em vídeos do youtube. Todas essas coisas são impensáveis quando estamos lendo um livro, que é um processo mais individual, solitário, reflexivo e não interativo.

Essas pequenas ações que praticamos no consumo da internet, têm embutidas em si, discretamente, o senso do coletivo na medida em que você se vê obrigado a constantemente pensar nos outros: “o que eles vão pensar desse comentário?”; “Esse vídeo vale a pena ser visualizado! vou curtir para que mais pessoas vejam também”; “esse produto não é bom, vou ‘descurtir’ para evitar que outras pessoas errem como eu”. Esses pensamentos, em geral, estão vinculados a outras pessoas em um sentido muito parecido ao do índio peruano que citei anteriormente. Você deixa um rastro — Carlos Nepomuceno a chama isso de linguagem dos rastros-, para que outras pessoas possam se beneficiar do seu conhecimento sobre uma experiência que você já viveu. Aquilo não te beneficia diretamente, mas como você já foi beneficiado por esse sistema anteriormente, você — da mesma maneira que o índio — sente-se compelido a retribuir. E por esse mecanismo estar constantemente sendo ‘martelado’ na sua cabeça todos os dias, McLuhan dizia que isso acaba por moldar sua forma de pensar, te tornando mais suscetível às ideias e comportamentos coletivistas.

Aldeia nem tão Global assim

O conceito de Aldeia Global, também cunhado por McLuhan, está relacionado aos impactos coletivizantes da TV sobre nossa sociedade como um todo. O mundo, nos anos 60, estaria se tornando uma grande tribo na medida em que toda informação estava acessível via satélite a todos seus habitantes instantaneamente, isso era uma novidade. Entretanto é importante entender que McLuhan não prognosticava, necessariamente, um mundo perfeito de total colaboração entre os povos. Ele frisava que isso era possível então, mas que nem sempre a vida em uma aldeia, onde todo mundo sabe da vida de todo mundo, é agradável ou pacífica.

Concordando com Hofstede, dizia que no mundo a competição se dá entre tribos, ou seja, mesmo dentro de uma nação você pode ter o acentuamento da disputa entre seus cidadãos e, à época, ele apontava os movimentos separatistas que se espalhavam pelo mundo como consequência dessa tribalização. Atualmente movimentos nacionalistas no mundo, refletem a tribalização trazida pela internet.

Outro ponto que ele destacava, e que corrobora com Hofstede, é o de que em um mundo mais coletivistas a sua identidade individual, “Eu”, cede lugar para identidade de grupo, “nós”, o que causa um certo desconforto nas pessoas que estão migrando de um mundo mais individualista para um mais coletivista, tornando-as mais violentas, em busca de uma identidade perdida, frequentemente sentem-se nostálgicas, ansiando pela volta do passado onde reside sua identidade.

Tribalismo e a internet.

Olhando para a internet atualmente podemos notar fortes indícios desse tribalismo previsto por McLuhan. Vemos surgirem ‘tribos digitais’ de pessoas agrupadas em tornos de interesses comuns. Mesmo porque a internet é uma ferramenta muito mais eficiente do que a TV para criar esses agrupamentos, também conhecidos hoje como “bolhas”. As tais bolhas se formam em torno de crenças, opiniões e interesses comuns e tem o efeito de acentuar tais visões de mundo, reforçando o sentido de pertencer aquele grupo. Alie-se a isso o efeito da comunicação altamente contextual, e muitas vezes superficial, trazida pelos novos canais como whatsapp, twitter e outros microblogs, e temos o resultado já previsto por McLuhan e Hofstader, que é uma briga superficial tanto motivada por identidade, quando nos colocamos em uma dessas bolhas, quanto uma disputa entre tribos, tipica de sociedades coletivistas quando essas bolhas se chocam. Ao invés de termos um senso de união oriundo dessa nova mentalidade, nos fragmentamos em torno dos que estão dentro e os que estão fora da nossa tribo.

Guerras e Pandemias.

Algo que historicamente demonstrar ter o pode de unir as tribos em torno de uma ideia de Nação é um inimigo em comum ou um desafio em comum. Percebi um exemplo anedóctico na última temporada do seriado Vikings, onde os vários Clans percebem a necessidade de ter um Rei dos Reis, que os unisse em uma nação Dinamarquesa para que pudessem enfrentar um problema em comum, a invasão de seus territórios por parte de estrangeiros. Esse mesmo tipo de problema foi visto na nossa historia recente nas Guerras Mundiais que uniram tribos que se enfrentaram a princípio, mas depois uniram o mundo todo em torno de um desafio comum, que era reconstruir a economia global no pós guerra. Os Estados Unidos por exemplo, elaboraram o plano Marshall, para auxiliar a Europa em sua reconstrução, entendendo que uma economia européia falida não era bom para eles também.

Logotipo do Plano Marshall criado pelos EUA para divulgar o programa

Mas além do medo de ser invadido e do instinto coletivista que se vê nos pós guerras, existe um outro evento capaz de unir as pessoas em torno de propósito comum: as catástrofes. Furacões, Terremotos, Tsunamis, Desastres Aéreos, todos eles provocam comoção e senso de compaixão entre as pessoas no mundo inteiro, mais recentemente descobrimos que as pandemias também tem esse poder.

Falando de Coronavírus, estamos vivendo uma época em que muitos exemplos desses sentimentos de egoísmo e coletivismo vem a tona diariamente, seja na mídia, seja em casa, nas ruas… Estão como que negritados para quem quiser ver. O ato de ficar em casa ou não, o fato de que algumas nações têm sistemas de saúde universais e outras não e quais suas consequências para a população, a dedicação dos profissionais da área da saúde e de voluntários altruisticamente arriscando suas vidas em hospitais, a necessidade de sustentar a economia e a renda das pessoas mesmo em caso de calamidades. Tudo isso está sendo destacado pela pandemia, ganhando maior evidência e tendem a ter sua importância revista no mundo pós-Coronavírus.

Menos individualismo, menos tribalismo e mais interdependência.

Nos final dos anos 40, no mundo pós-guerra, esse sentimento de interdependência estava bastante aflorado, foi nessa época que entidades como a ONU e a OMS foram criadas, estabelecendo um fórum ao qual as questões mundiais pudessem ser endereçadas. Mas na medida em que os eventos da guerra vão ficando distantes, caindo no esquecimento, especialmente das novas gerações, tais entidades, e o sentimento que elas representavam, parecem perder a relevância frente ao crescimento do senso individualista e nacionalista no mundo. Queremos resolver as coisas ao nosso modo, para agradar nosso grupo e esquecemos da tal interdependência.

Spock da série StarTrek

Veja bem, não advogo a suplantação do individualismo ou do tribalismo por algo diferente, acredito que eles são necessários e benéficos para o sociedade quando bem aplicados. Me parece que ambos podem ser ditos como naturais segundo autores já tratadas aqui neste artigo, mas me parece que não é nada natural pensarmos em termos de Humanidade, do coletivo global. Tanto o coletivismo tribalista quanto o individualismo costumam nos por em disputas mesquinhas em torno de nós mesmos ou do nosso grupo. É preciso que uma pandemia bata em nossas portas pra gente perceber nossa fragilidade e interdependência e nos lembrar da força que a humanidade tem quando se une em torno de propósitos comuns.

Precisamos urgentemente ter um senso maior de que dependemos uns dos outros, talvez numa nova declaração de interdependência dessa coletividade, entender que o que nos trouxe até aqui, obviamente não está funcionando mais, e que mudanças vão ser necessárias após esse choque de realidade. Mesmo porque nossos problemas estão ficando cada vez mais imediatos, e o próximo pode estar ali na esquina e pode não ser tão passageiro.

Charge sobre o aquecimento global / The Economist Abril-20

Live long and prosper.

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