De onde veio a primeira ideia

Rodrigo Palhano
8 min readSep 12, 2023

Pensar sobre ideias, essa marca distintiva do ser humano, tem uma origem inusitada. Veja neste artigo porque entender sobre sua história pode nos ajudar a lidar melhor com aprendizagem e tecnologia na atualidade.

Coisas que nos distinguem dos outros animais

A busca pela origem da primeira ideia é um tema intrigante que nos leva a explorar as complexidades da mente humana e a sua história. Nós, seres humanos, possuímos a notável habilidade de refletir antes de agir. A reflexão, uma das capacidades que nos distingue de outras espécies no mundo animal, consiste do fato de que separamos nosso pensamento da ação imediata, enquanto os animais agem em resposta direta a estímulos como a fome ou a presença de uma presa. Os seres humanos têm a capacidade de pensar na ideia da caça em si, refiná-la e até projetá-la no futuro. Nós podemos refletir sobre a caça não apenas como uma necessidade imediata, mas como uma ideia abstrata que pode ser aprimorada ao longo do tempo.

Outro traço distintivo da humanidade é a introspecção, o ato de refletir sobre o próprio pensamento. Quando nos encontramos ponderando sobre ideias, pensando por pensar, mesmo em coisas sem sentido aparente, como um elefante cor-de-rosa, e nos questionamos sobre o motivo pelo qual estamos pensando nisso, estamos exercitando a introspecção. No entanto, estudos sugerem que essa capacidade que nos parece tão natural, nem sempre esteve presente na história da humanidade. Há apenas cerca de 3.000 anos nós não possuíamos essa habilidade. A teoria da Mente Bicameral, proposta por Julian Jaynes, argumenta que os gregos antigos não tinham a capacidade de introspecção e, pasmem, afirma que eles acreditavam que suas próprias reflexões eram vozes divinas que lhes ordenavam. Se esta teoria estiver correta seria raozável pensar que a introspecção não é uma habilidade inata mas aprendida.

Finalmente, e talvez a ferramenta que mais nos diferencia das demais espécies do planeta é a nossa sofisticada capacidade de uso da linguagem para comunicação. A linguagem nos permite a abstração e a expressão de ideias simples e complexas, sendo a principal ferramenta do raciocínio humano. De fato, nossos pensamentos frequentemente se manifestam em palavras e frases, mesmo ainda em nossas mentes. Portanto, é razoável afirmar que a linguagem desempenha um papel fundamental na formação das próprias ideias humanas.

Já nascemos sabendo como falar e ter ideias?

Embora compreendamos que os seres humanos têm a capacidade singular de pensar sobre o próprio pensamento, desenvolver ideias dissociadas das ações imediatas, e de se expressar por meio da linguagem, quando e como essas capacidades se desenvolveram não está totalmente claro. Essa busca nos leva a um destino comum curioso para todas essas capacidades: as nossas emoções.

Arqueologicamente, seria desafiador encontrar um “fóssil” da primeira ideia que comprovasse sua origem. Apesar dessa dificuldade, a busca pelas origens da linguagem pode fornecer pistas valiosas sobre a origem das primeiras ideias, já que a linguagem é seu veículo. A primeira forma de linguagem certamente não foi a escrita, sabemos que a escrita data de menos de 3500 anos atrás. Nem mesmo a fala, uma vez que essa habilidade se desenvolveu há aproximadamente 50 mil anos. Então qual teria sido a primeira forma de linguagem? Poderiam ter sido pinturas, grunhidos ou seria uma linguagem baseada em gestos?

A primeira linguagem

Consideremos como uma mãe se comunica com seu recém-nascido. Essa comunicação inicial é baseada em gestos, sorrisos, carinhos, murmúrios e outras expressões que visam dar vazão as emoções que a mãe e seu filho sentem, das mais básicas, como fome e sede, às mais elaboradas, como alegria e tristeza. Se analisarmos isso com mais calma, vamos perceber que estas interações constituem um tipo de proto-vocabulário que permitem ao bebê se comunicar com o mundo ao seu redor, mesmo sem ter uma ‘linguagem’ mais estruturada desenvolvida. Isto posto, seria razoável considerarmos que essa comunicação, a das primeiras interações entre pais e filhos, seria a nossa primeira linguagem, uma vez que podemos deduzir que ela antecede todas as formas anteriores no nosso desenvolvimento, desde que o homem é homem. Gosto de chamá-la de “linguagem dos bebês” ou ainda “linguagem emocional”.

O filósofo canadense Stuart Shanker propõe que essa linguagem inicial, desenvolvida nos primeiros dias de vida entre mãe e bebê, evolua em complexidade à medida em que a criança expressa as emoções que vai descobrindo em si através dela. Cada nova expressão, novo tipo de sorriso adicionam uma nova ‘palavra’ a esse vocabulário. Nesse sentido, os pais, ao provocarem interações mais elaboradas com a criança, adicionando nuances aos tons dos mumúrios, a amplitude das caretas e gestos, acabam por desempenhar um papel fundamental no seu desenvolvimento, uma vez que vão calibrando a intensidade de suas reações também ajustam na criança a capacidade de lidar com as emoções em suas várias intensidades. Além disso, ensinam-lhe a causalidade, ou seja, como suas ações têm consequências no mundo através desse interagir.

Shanker chama esse processo de co-regulação emocional, adiciona que durante o desenvolver dessas interação a criança também vai desenvolver a noção de si mesma como um agente separado do mundo, alguém que pensa, age, provoca mudanças no ambiente e é afetado por elas.

E as ideias, de onde vieram afinal?

Tá legal, mas e as ideias? Que têm a ver com essa linguagem? Shanker argumenta que a capacidade de reflexão, de ter ideias, emerge quando a criança é capaz de pensar sobre algo sem que isso esteja diretamente ligado a uma ação imediata, o que seria uma reação e não uma reflexão. A criança desenvolve essa capacidade à medida que interage com seus pais, expandindo o vocabulário emocional. Isso não apenas a ajuda a lidar com suas próprias emoções e interações com o ambiente, mas também a refletir sobre suas ações e suas consequências para seu bem-estar, no momento em que ela descola tais pensamento das suas emoções imediatas ela começa a refletir. Shanker ainda pondera que a predisposição genética de nós homo sapiens é fundamental para que essa capacidade se desenvolva. Macacos ou avestruzes não desenolveriam a fala mesmo que fossem treinados. Contudo, apesar dessa pré-disposição genética, nós não nascemos com a habilidade de refletir e falar, ela é adquirida, e é por isso que ela vai ser mais ou menos desenvolvida de indivíduo para indivíduo.

O papel das emoções na construção das ideias

Outro ponto que Shanker nos trás que vale destaque é o fato de que as palavras que a criança aprende só são compreendidas de verdade quando enriquecidas com um contexto emocional:

“Por exemplo, ‘Mamãe’ é uma das primeiras palavras que as crianças usam. Se perguntarmos: “O que significa ‘mamãe’ para você?” e a resposta for: “Cabelo vermelho, olhos verdes e alta”, suspeitamos de problemas de desenvolvimento. Mas se a criança disser: “Mamãe é carinhosa e me alimenta” ou “Mamãe é má e mandona e não faz o que eu quero que ela faça”, então nos sentiremos confiantes quanto ao desenvolvimento da criança. Palavras significativas envolvem imagens emocionalmente ricas. O mesmo acontece com “papai” ou “não”. Quando as crianças desenvolvem palavras sem significado, elas tendem a usar as palavras de forma roteirizada, repetindo o que ouviram na TV ou leram em um livro.” — [Shanker1]

As palavras que aprendemos vão ganhando nuances, ou significados, tão logo deixem de ser meras imagens relacionadas a objetos no mundo e passem a ter contexto emocional. Nesse sentido, as emoçoes são parte indissociável do que chamamos de ideias, e do próprio processo de pensar, do contrário acabamos adquirindo vocabulário, símbolos (semiótica), sem contudo atribuir-lhes significado (semântica).

E que me importa?

Franco Berardi, em seu livro “Depois do Futuro”, problematiza esta condição apontada por Shanker tendo em vista o papel das novas tecnologias no ensino de palavras em nossa geração:

“É um futuro amedrontador ao invés de promissor que aguarda essa geração, precarizada e altamente conectada — a primeira a ter aprendido mais palavras de uma máquina do que de uma mãe” — [Berardi2]

Quando observamos atualmente como nós estamos aprendendo conceitos, sem professor, e como as crianças de nosso tempo aprendem as palavras através de dispositivos eletrônicos ao invés de aprender com seus pais, estamos aprendendo palavras (símbolos) mas não seus significados (semântica). Aprendemos conceitos sem a rica experiência de seus contextos. A medida em que avançamos tecnologicamente, rapidamente, algo de nossa humanidade vai se perdendo sem que tenhamos tempo para refletir sobre essas perdas, que potencialmente acarretarão em menor poder de compreensão da realidade. Nós adultos, temos menor contexto emocional e significado relacionado às palavras que aprendemos e, especialmente na primeira infância, desenvolvemos menor poder cognitivo, uma vez que a nossa capacidade de abstração, de pensar, ter ideias e de resolver problemas, vai ficando comprometida pela ausência dessa construção de significados, pela ausência de emoção no aprendizado de nossas primeiras palavras, vamos ficando robotizados.

Recapitulando

Surpreendentemente, nossa capacidade de raciocínio e reflexão está enraizada nas emoções. Embora a separação tradicional entre razão e emoção tenha sido uma obrigação intelectual, a análise do desenvolvimento infantil, a aquisição da linguagem, a formação do conceito de “si-mesmo” e a capacidade de introspecção e reflexão revelam uma conexão profunda e lógica entre emoção e razão. A origem das primeiras ideias, portanto, está entrelaçada com a complexa teia de emoções, linguagem e reflexão que molda a experiência humana.

Sabendo disso, é importante que estejamos atentos a como novas linguagens e instrumentos de comunicação vão afetando a maneira como ‘aprendemos’ o mundo. Saber dosar tais tecnologias, especialmente na primeira infância, tornando-as ferramentas que potencializam o nosso desenvolvimento ao invés de prejudicá-lo, é um desafio que vamos ter que enfrentar para continuarmos evoluindo de forma saudável enquanto sociedade.

Esse é o primeiro artigo da série Educando para Tecnologia que inauguro hoje aqui no Blog. Se você gostou ou se interessa pelo assunto, inscreva-se e aguarde pelos próximos artigos.

Referências.

[Shanker1]: Greenspan, Stanley I.; Shanker, Stuart. The First Idea: How Symbols, Language, and Intelligence Evolved from Our Primate Ancestors to Modern Humans (p. 25). Hachette Books.

[Berardi2] Berardi, Franco; Silva, Regina. Depois do futuro (Coleção Exit) (Portuguese Edition) (pp. 5–6). Ubu Editora.

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Rodrigo Palhano

Internet, Communications, Social Media, Tech Enthusiast