Como o Coronavírus vai mudar a nossa relação com o espaço e o tempo | Legados do Coronavírus

Rodrigo Palhano
8 min readJul 22, 2020

Neste último artigo da série Legados do Coronavírus falo sobre como as mídias podem influenciar a nossa percepção de espaço e de tempo, e como o mundo pós pandemia pode ser afetado por isso.

O que é longe para você hoje? Mudei meu conceito de longe a um tempo atrás, quando um cliente me disse que morava em Tabatinga-AM, e que a viagem de lá até o Paraná poderia durar até 7 dias, embora a distância física não seja mais de 3500 km. Se você buscar no Google Maps um trajeto, ele vai te dizer que não sabe como chegar lá, não sabe que você vai precisar tomar chalanas e jangadas pelos rios da amazônia a fim de chegar até aqui no Paraná, mas acredite, é possível. Isso me faz pensar que em nosso cotidiano nossa forma de perceber a distância e o próprio espaço são relativos, e relativos em especial ao ponto de partida, em outras palavras, de onde você mora. Certamente que para um residente de Iquitos no Peru Tabatinga é perto, 8 horinhas de barco, isso é do cotidiano deles, e é lógico que para um Carioca ou um Paulista, Tabatinga-AM (não a de SP) é super longe.

Avenida da Amizade em Tabatinga-AM

É bem verdade que hoje se roda o mundo em menos tempo que a viagem de 7 dias até Tabatinga no Amazonas. Existem rotas mais e menos eficientes em termos de tempo de viagem, e é justamente nesse ponto que eu quero elaborar. As distâncias físicas são relativas neste aspecto. Não quer dizer que porque a distância física entre um ponto e outro seja de 3500 KM e um avião voe a 800KM por hora, que você vai chegar lá em 4 horas e meia, dependendo do caso, você pode levar 7 dias. Agora, se eu quiser falar com um residente em Tabatinga pela internet, quanto tempo leva para minha mensagem chegar até lá? Hoje a resposta é: instantaneamente (Tabatinga tem internet), e nesse sentido, como já explorei em outro artigo dessa série, desde o telégrafo e o telefone, quando conversamos com alguém, é como se nos ‘teleportássemos’ para Tabatinga, é como se estivéssemos lá, instantaneamente. Tais tecnologias do século XIX já haviam rompido com os impedimentos do espaço e do tempo que uma viagem de 7 dias imporia a tais interlocutores.

Telégrafo

Mas se até o telégrafo já tinha mudado nossa relação com o tempo e o espaço, o que dizer da internet? E se isso é verdade, que me importa?

Se perguntássemos para Einstein, ele diria que o tempo é relativo, e passa de forma diferente em função da velocidade que um objeto viaja. Mas será que isso vale para informação também? E se for o caso, qual o papel da mídia nessa equação? Harold Innis trabalhou a dualidade espaço e tempo em sua obra, “Viés da Comunicação”, propondo que algumas mídias viajam melhor no tempo, no sentido de que são mais duráveis, como a escrita em argila, em pedra, ou no livro. Já outras viajam melhor no espaço, no sentido de que, embora sejam efêmeras, são mais fáceis de se transportar a longas distâncias, como o papiro se comparado a pedra, e mais recentemente o rádio e a TV se comparados ao livro. Mas já pensou se nós tivéssemos uma mídia que viajasse bem nas duas dimensões? Tanto no espaço como no tempo como, por exemplo, a internet? Innis certamente ficaria intrigado.

Já o colega de Innis, Marshall McLuhan dizia que as tecnologias são extensões do nosso corpo, o carro, por exemplo, é uma extensão de nossas pernas, assim como o telefone uma extensão da nossa voz. Entretanto, a forma como isso impacta no nosso processo cognitivo é que é importante. Quando alguém me diz: “Rodrigo, venha de São Paulo até o Rio de janeiro amanhã”, o que o meu cérebro entende imediatamente é que isso é perfeitamente possível, pego a ponte aérea e estou lá em 1 hora. Contudo, para um cidadão do século XIX, isso não faria o menor sentido, mesmo porque com os meios de transporte da época, seria simplesmente impossível. O cérebro do cidadão deste tempo ainda não havia incorporado os meios de transporte modernos como extensões de suas pernas, o que o tornava, portanto, incapaz de pensar assim. O tempo e o espaço para ele eram diferentes do que são hoje para nós hoje.

Marshall McLuhan dizia que as tecnologias são extensões do homem.

A internet atualmente nos coloca em todos os lugares ao mesmo tempo, por mais longínquos que sejam. Nosso cérebro e sua neuroplasticidade, já nos permite a essa altura, incorporá-la como sua extensão, modificando assim nossa percepção antiga de espaço e de tempo. Esse leque de possibilidades recém criadas e impensáveis para um cidadão do século XIX, está a nosso pleno dispor. Einstein e filósofos canadenses à parte, de maneira mais prática, tente imaginar quais são as possibilidades que não estamos aproveitando, com todo esse ‘teleporte’ instantâneo, de presença de voz e imagem por videoconferência, quais novas possibilidades surgirão? Quantos paradigmas que o limite físico historicamente nos impuseram poderiam ser quebrados já? Por que ainda trabalhamos como no século passado? É bem verdade que tivemos algumas evoluções incrementais, mas nada disruptivo e que aproveitasse todo esse potencial da nova mídia.

Neuromancer de Willian Gibson

William Gibson, autor de Neuromancer e precursor do gênero cyberpunk, cuja temática era “alta tecnologia, baixa qualidade de vida”, e que influenciaria inclusive os irmãos Wachowski a produzir o filme Matrix, dizia que “o futuro já está aqui, só não está igualmente distribuído”, e eu acredito que isso traduz bem a situação atual. As tecnologias já estão disponíveis há um certo tempo, mas nossas amarras aos paradigmas estabelecidos nos impedem de aproveitá-las em todo seu potencial. Eu diria ainda que as tecnologias já estão aqui, mas a nova cultura ainda não está. Percepção essa que o Coronavírus vem alterando com uma velocidade sem precedentes, aculturando quase que ‘goela abaixo’, porque vem nos obrigando a utilizar as tecnologias disponíveis a seu máximo potencial, para que possamos continuar vivendo minimamente bem, isso se compararmos esse ‘bem’ com a nossa vida no mundo pré fevereiro de 2020.

Mas voltando a nossa pergunta: E as empresas que antes disso tudo já tinham toda condição de operar 100% em regime de trabalho remoto, não o faziam até então por quê? Já escrevi outro artigo explorando um pouco destes ‘por quês’, mas o fato é que o Coronavírus fez com que eles desaparecessem assim, de repente, como se nunca houvessem existido. Mas quais as consequências disso para o nosso futuro como sociedade? Será que quando isso tudo passar, e vai passar, nós voltaremos a viver como antes? Tanto os funcionários como os empresários que se permitiram experimentar os benefícios do trabalho remoto e perceberam que isso não é o fim de suas carreiras e empresas, vão querer voltar ao já ‘antigo’ modo de se fazer negócios e de se trabalhar? Confesso que estou bastaaaante curioso para ver o desenrolar dessa história, que já vem. Digo curioso porque acredito que isso pode ditar a maneira como vamos fazer trabalho e negócios nos próximos anos e isso pode nos levar a consequências ainda mais inusitadas…

Home-office está se tornando o novo normal

Em outro artigo, falei sobre o processo de formação das grandes cidades e sua função na história recente da nossa sociedade. Argumentei que se as pessoas não precisassem morar empilhadas em grandes cidades, sofrendo de todos os problemas que os grandes centros as impõem, talvez, em busca de maior qualidade de vida, poderia ser que elas optassem mais e mais por morar em cidades menores no interior, ou no litoral, quem sabe até mesmo em outro país? A condição é que tais locais disponibilizassem igualmente oportunidade de sobrevivência, ou seja, de emprego. Nesse cenário, estando as pessoas menos presas fisicamente ao local onde trabalham, muita coisa deve mudar. Conhecer vários lugares durante a vida, passa a ser algo perfeitamente factível para o cidadão comum, uma vez que ele pode trabalhar e viajar ao mesmo tempo. Teríamos mais nômades digitais então? E as famílias, como seriam formadas nesse novo mundo de viajantes, sem amarras a uma ou outra cidade em particular? Devo concordar que nem só o trabalho nos prende a uma cidade, a proximidade com nossos parentes e amigos também é fator importante. Mas mesmo essa proximidade é mitigada pelos novos meios de comunicação, uma vez que eles nos permitem, mesmo estando longe, nos sentirmos próximos, ‘teleportados’ no final do dia para a sala da casa da vó, batendo papo com os tios e os primos e irmãos.

Nomadismo digital já é prática comum entre os mais jovens

Quando temos uma mudança tecnológica e cultural da proporção que estamos vivendo, mudanças antes impensáveis passam a ocorrer, o que antes parecia impossível se torna o ‘novo normal’, mas existem alguns conceitos mais arraigados que também podem mudar e que não são tão óbvios. Um deles é o de espaço e tempo como já demonstrado, ou ainda como formamos nossas famílias, cada vez mais espalhadas e misturadas pelas andanças da população de raízes mais fluidas, ou ainda conceitos que antes tornavam impossíveis alguns comportamentos como o nomadismo digital, que hoje ainda são privilégio para muito poucos. Neste mundo pós-pandemia, os novos modelos de trabalho ignorarão a distância e o tempo para contratar e produzir riqueza no mundo, e neste novo mundo, Tabatinga é logo ali, e talvez estejamos caminhando para um tempo no qual quando alguém te perguntar o que é longe, você vai responder: Marte?

Esse foi o meu último artigo da série Legados do Coronavírus, espero que tenham gostado. Para quem não leu os demais, deixo aqui o link para o primeiro. A gente pode continuar nossa conversa abaixo, você pode deixar nos comentários suas expectativas, previsões, anseios e receios quanto ao mundo pós-pandemia.

Até a próxima!

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Rodrigo Palhano

Internet, Communications, Social Media, Tech Enthusiast